22 Agosto 2023
Em seu mais recente livro, Mitologias fascistas: a história e a política da irracionalidade em Borges, Freud e Schmitt, o historiador Federico Finchelstein argumenta que, em nosso próprio presente, “o mito e as mentiras voltaram ao centro da política” e com isso as críticas antifascistas compartilhadas por diversos pensadores.
Em sua análise, enfatiza as perspectivas interpretativas de Sigmund Freud e Jorge Luis Borges relacionadas aos processos de vitimização impulsionados pelas mitologias fundamentais das políticas fascistas, ressaltando a necessidade de se considerar esses processos como parte de um espectro mais amplo de encontros míticos e traumáticos.
O diálogo com [a revista] Ñ aconteceu na manhã posterior às eleições primárias, sendo assim, a conversa que giraria em torno da história e a filosofia, acabou sendo tomada também pelo cenário político argentino, sempre à luz de suas pesquisas.
A entrevista é de Bibiana Ruiz, publicada por Clarín-Revista Ñ, 15-08-2023. A tradução é do Cepat.
Como avalia o resultado das eleições primárias argentinas (PASO)?
A avaliação que faço é muito negativa. Ou seja, não me surpreende em nada porque, lamentavelmente, normalizou-se o extremismo de alguém como Javier Milei, um populista de extrema direita que, assim como Trump, Bolsonaro e tantos outros, representa esse novo populismo muito mais próximo do fascismo do que seus antecessores. E foi normalizado sendo apresentado como um liberal, ou um libertário, termos que ele mesmo usa quando, na realidade, representa algo muito mais extremo.
Em minha opinião, ele não representa uma ideologia pluralista – que tem a ver com o mundo da vida democrática –, mas, ao contrário, a ideia de que a política é um fundamentalismo. Quase diria que é um talibã no sentido de que não aceita a possibilidade de que outros pensem diferente, e mente de forma constante. O mais preocupante desse tipo de política é que, ainda que em um primeiro momento apareça como a performance e as falas de um palhaço ou um desequilibrado, na realidade, tem uma ideologia muito antidemocrática por trás.
Talvez não seja tão relevante para seus eleitores, porque muitos não concordam com suas propostas e dizem que estão cansados dos outros. O cotidiano pesa mais do que a ideologia e a doutrina?
Muitas coisas que você aponta têm a ver com a centralidade do problema: há uma grande insatisfação entre os eleitores, mas isso é típico, claro, na história do populismo. Ou seja, diante dessas insatisfações e problemas reais, são apresentadas soluções mágicas disparatadas, e o interessante é o estilo da antipolítica, ou seja, o personagem que faz política como se estivesse fazendo outra coisa.
Tem um problema aí, é uma pessoa que vem se dedicando à política, mas diz que não representa a política. Se são apresentadas alianças e arrumações políticas, que são típicas da política, é porque o homem está fazendo política, e esse discurso antipolítico é, na realidade, uma mentira, uma forma de propaganda, é o que consegue gerar tanto impacto e apoio, mas se baseia em uma técnica típica de propaganda dos populismos. Nem sequer é original. Perón e muitos outros falavam disso. Milei não é Perón no sentido de que Perón representava um populismo que queria se afastar do mundo da ditadura e do fascismo.
Não esqueçamos que os fascistas destroem a política da democracia por dentro para criar uma ditadura. E Perón era o homem forte de uma ditadura (a de 1943) que destruiu a ditadura para criar uma democracia que tem muita intolerância e disposições autoritárias, portanto, populistas, mas, mesmo assim, não faz da violência e da promessa de violência um eixo central da política. E é isso que vemos em Milei. Aqui, há uma forma de prometer violência que gera violência, como temos visto no Brasil e nos Estados Unidos.
Na última vez que conversamos, você abordou a necessidade de levar essas pessoas a sério. Naquele momento, falávamos de Bolsonaro. Considera que Milei foi subestimado, que no fim o meme triunfou?
É interessante. Falamos disso no caso de Bolsonaro e o Brasil acabou com uma tentativa de golpe de Estado. O que vemos são pessoas que não se importam. Se há algo que representa Milei é sua falta de interesse, seu ódio ao Estado e às instituições. Há uma mistura de uma mensagem profundamente autoritária, com crenças mágicas de que as coisas aparentemente acontecem sem as instituições. É muito preocupante e, sim, foi subestimado, inclusive, ao ser apresentado como um político normal. Não é em sentido algum, muito menos em um sentido político.
Acredito que a normalização de Milei tem a ver com alguns estereótipos equivocados: não é um louco lindo, é um louco no sentido ideológico, um extremista, um delirante. Não é uma patologia individual, tem a ver com uma proposta antipolítica – portanto, política de extrema direita – e não tem nada a ver com o mundo tradicional da política.
O problema de subestimá-lo é que, diante das coisas ruins que existem, ele representa uma coisa que é muito pior: rejeita o mundo do diálogo, da deliberação e da racionalidade da troca de ideias. Para citar o meu mais recente livro, ele propõe mitologias e se propõe como um herói mítico que, aparentemente, de forma divina, vai nos salvar de nossos problemas, o que é impossível. Basta ler a história recente ou olhar para o Brasil ou os Estados Unidos.
Neste caso, enxerga um deslocamento do mito clássico do herói para o mito moderno do líder?
Claro, afinal o que há de heroico clássico em Milei [?]. Ao contrário, ele representa o típico demagogo que diz coisas que não têm nada a ver com ele e defende as políticas mais reacionárias, por exemplo, sua denúncia da educação sexual. Coloca em questão a família e não só é incongruente com sua própria família – aparentemente composta por ele e os seus cachorrinhos, chamados de filhos –, também tem a ver com as concepções mais reacionárias do que deveria ser o grupo familiar.
É uma constante contradição, e isso o define. Se tem alguém que representa um ataque à liberdade, claro que é Milei, que fala de liberdade. E (Donald) Trump tem sua rede social que se chama “Verdade”, quando é o maior mentiroso na história dos Estados Unidos. E Hitler dizia que os principais racistas eram os judeus, quando ele era o principal racista na história mundial. Esse tipo dizendo “viva a liberdade” e as pessoas por trás que repetem suas palavras, como uma seita, e que dizem “viva”, não têm nada a ver com o mundo da política tradicional, mas com a ideia do ritual de uma religião onde alguém diz algo e todos repetem.
Você disse que não há política sem mentira, e a mentira segue presente no núcleo da política, assim como os mitos.
Sim, totalmente, mas na política da responsabilidade de Max Weber podemos dizer mentiras, exagerar promessas. Quando os políticos entram nesse tipo de terreno, depois têm clareza de que uma coisa é o que dizem e outra é o que podem fazer, e esses extremistas tendem a acreditar em suas próprias mentiras. Um tipo que inventa sua própria realidade, que diante dos problemas reais que temos, por exemplo, na Argentina, com as moedas, promete que tudo vai ficar bem e será bom se não tivermos moedas. Além de tudo, apresenta-se como especialista.
É preciso ter muito cuidado com o que dizem, porque em geral políticos assim tendem muitas vezes a irradiar. Há alguns anos, eu dizia que, bem, a mentira existe na política. Contudo, há diferentes tipos de políticos e há os mais perigosos que, começando pelos fascistas, são os que não só acreditam em suas mentiras, como também fabricam novas mentiras para destruir a realidade e criar realidades alternativas.
Por exemplo, diante da realidade da mudança climática – algo que podemos ver todos os dias –, há quem diga que é uma mentira socialista. Essa é a típica mentira de um demagogo fascista, nega a realidade e diz qualquer coisa. Claro, dizer qualquer coisa quando se está no governo implica não fazer nada e distorcer a realidade, o que gera graves consequências para todos.
Hoje, o inverossímil é justamente a realidade. Borges dizia que o nazismo sofria de irrealidade.
Correto. Penso que Borges se espantaria e esperaria uma união diante do espanto. Ficaria espantado com a ignorância e a grosseria do personagem. Contudo, para além da vulgaridade de Milei, que é real, constante e se vê todos os dias, o preocupante é a política que ele representa, que não dialoga, que é a política do líder messiânico, algo que temos visto na Argentina. O que talvez até agora não tinha se dado é um populismo tão voltado para a extrema direita e, portanto, tão próximo do fascismo.
Por que argumenta que em nosso presente, em que o mito e as mentiras voltaram ao centro da política, as críticas antifascistas de Borges e Freud ganham força novamente?
Quando conversamos, dois anos atrás, candidaturas assim estavam surgindo na Argentina, mas já as tínhamos visto em outros lugares e com sucesso, lamentavelmente, para a vida da democracia. Se voltarmos a pensadores como Borges, quando esses extremismos estavam surgindo, viram o triunfo da irracionalidade, do mundo do mitológico. Para além da vulgaridade, a mitologia de Milei apresenta muitos perigos para a política.
Voltando ao seu livro, como o surgimento do fascismo influenciou na psicanálise?
Em determinado ponto, o pensamento de Freud estava preparado para pensar situações assim. A psicanálise é uma forma de entender a irracionalidade e buscar, em determinado ponto, moderar e eu diria quase buscar avançar e, inclusive, superar essas tendências irracionais. Nós mesmos buscamos entender o mundo do inconsciente para justamente dar uma resposta racional a tendências assim. E no marco político se apresenta uma situação semelhante: sempre vão aparecer políticos assim, com desejos e políticas irracionais, e isso talvez apele aos sentimentos mais violentos e discriminatórios das pessoas.
Não podemos pretender que isso não vai acontecer. Por outro lado, estamos falando dessa sacudida na política argentina e é muito difícil não relacionar o tema do livro com o que acontece no país. A ideia do livro é buscar entender novamente essa crítica tão forte, tão poderosa, que pessoas como Borges e Freud fizeram ao fascismo, para talvez conseguir compreender nossos próprios problemas. Lamentavelmente, neste momento, a política da irracionalidade se mantém forte e representa perigos.
A leitura freudiana do fascismo repercutiu naqueles que assumiram uma posição que era claramente crítica às teorias freudianas, como Borges e Antonio Gramsci.
Eram críticos da psicanálise. No entanto, em diferentes momentos, não rejeitaram a possibilidade de que talvez houvesse algumas dimensões que a psicanálise pudesse entender. Depois, Adorno e seus colaboradores vão falar da personalidade autoritária, também se baseando nas teorias de Freud e no perigo do fascismo, porque essas políticas e essas promessas messiânicas de violência penetram, têm certa chegada. Nessa perspectiva, não descartavam que, em grande escala, ocorresse uma situação semelhante.
Por outro lado, Borges. Parece que seu interesse é diferente em relação a Freud e ele o vê mais a partir de uma história intelectual. A preocupação em Freud não é tanto com essa personalidade autoritária da massa. O que preocupa Borges é saber a razão pela qual pessoas cultas, que leem, decidem deixar a racionalidade de lado e nadar nesse oceano de ódio e de mitologia de irracionalidade.
Há uma conexão direta com o eu interior no fascismo.
Sim, pelo menos em Borges o interessante é que não é uma decisão que se pretende irracional, ou seja, vou deixar a cultura e a racionalidade de lado para buscar encontrar o que há de mais instintivo em meu próprio ser. Esse seria, por exemplo, o personagem desse conto tão visionário que é Deutsches Requiem, no qual Borges se coloca na pele do diretor de um campo de concentração nazista para entender por que esse intelectual, uma pessoa com um doutorado, decide abraçar a irracionalidade da violência mais extrema.
Borges destaca a contradição, essa suposta identificação com o mundo que Freud chamaria de “o inconsciente”, mas que para Borges seria o mundo do instinto. Tanto Borges quanto Freud pensam que essa ideia de encontrar a autenticidade também é conceitual, também faz parte de um projeto ideológico. É típico dos fascistas apresentar a democracia como algo artificial.
Por que você escolheu Carl Schmitt como posição oposta a Freud e Borges? Podem dialogar?
Podem dialogar. No caso do livro, o capítulo sobre Schmitt começa zombando de Freud. Para mim pareceu interessante porque (em Deutsches Requiem) Borges tentou lançar um olhar ficcional a uma preocupação tão típica dele, que era saber por que os intelectuais defendem políticas irracionais. Em um ensaio de não ficção que havia escrito naqueles anos, disse: “Hitler me interessa muito menos do que os intelectuais que o apoiam”.
O que me interessava de Schmitt é que talvez seja um dos poucos fascistas com uma grande cultura e seriedade acadêmica. É um nazista, mas diferente da maior parte dos nazistas, não é um ignorante, é um professor autor de livros muito importantes que decide deixar a irracionalidade de lado para abraçar esse mundo do mitológico, o da ideologia e o culto político.
Em certo sentido, Schmitt é um personagem borgeano. Justamente, assim como tantos outros, tenta buscar essa realidade que eles veem como totalmente diferente do mundo do racional. Schmitt não é um ignorante, não está lidando com slogans e tenta, em minha opinião, de forma lamentável e perigosa, dar um marco teórico a esse mundo irracional da mitologia. Então, ele busca explicar por que as mitologias funcionam, por que o mito é importante.
No caso de Freud e Borges, acontece o contrário: eles tentam explicar por que o mitológico é um problema. Então, sim, eles estão em diálogo. No livro, procurei estabelecer paralelos e profundas diferenças, porque estamos falando de dois pensadores antifascistas com os quais me identifico e, por outro lado, de um pensador nazista autoritário mitológico com quem, é claro, não me identifico, nem concordo, mas que não pode ser ignorado. E isso é algo que, por exemplo, Gramsci também dizia: “para criticar o fascismo é preciso entendê-lo”.
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“Milei é um populista de extrema direita, um louco ideológico”. Entrevista com Federico Finchelstein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU